segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Ilustração de uma notícia triste

(o conto)

Pálpebras fechando, a forma caminhava pelo negro, em círculos vermelhos.

Quando criança eu tinha tanto medo dessas formas que caminhavam enquanto eu não dormia. Tentava contar carneirinhos para dormir mais rápido, mas eles não se formavam branquinhos e fofinhos no escuro dos meus olhos. Eu não conseguia imaginar uma cerca, o pasto, as estrelas. O escuro era abstrato, estava sempre em movimento e toda vez que eu identificava uma forma ele a ela diminuía, diminuía, diminuía, até engoli-la por completo. Eu tinha medo desse escuro, do escuro dos meus olhos acordados.

Minhas pálpebras tão lentamente piscavam e o céu chovia, eu não estava dormindo, minhas pálpebras se abriam lentamente, do céu chovia gotas pesadas e eu não as sentia.

Passou um vulto por mim, levantei minha mão, ele me olhou, mas não me viu. Será que ele está dormindo?

Quando eu era pequeno eu tinha medo de dormir e não conseguir acordar. Lembro-me de seguidos dias em que adormeci vendo televisão e que ainda assim seguia ouvindo os sons da casa: minha mãe brigando com meu pai, meu cachorro latindo, os comerciais altos da TV...e no meu sonho eu berrava, chorava e implorava para alguém ir me acordar, eu queria acordar, mas não conseguia, eram minutos que duravam horas. O tempo era uma medida do infinito. Eu não queria mais dormir vendo desenho, eu nunca mais assisti televisão deitado, era sempre sentado e de preferência no chão.

Olhos brilhantes de qualquer coisa, de qualquer gota. Do céu chovia pingos pesados, mas eu não os sentia. Meu corpo estava formigando, parecia até uma proteção. O céu chovia.

Tinha muitos prédios em volta de mim, muita vida em cada prateleira sobreposta e das janelas fechadas as minhas pálpebras moles eram uma luta abafada. Um silêncio ritmado. Talvez estivessem todos dormindo.

Eu adorava dormir depois de um dia de verão. Depois de correr, jogar bola, entrar no mar, pegar jacaré. Era um sono sem quebras e de subconsciente feliz. O corpo formigando me recordou do verão. Dormia tão pesado e de qualquer maneira que sempre acordava com o braço “bobo” (como dizia meu pai). Tinha formiguinhas caminhando pela minha mão. Minha mãe fazia-me uma massagem e logo passava. De formigamento eu sempre gostei e de formigas também.

As pálpebras estavam pesando, pesando e caindo como a chuva do céu sobre os meus olhos. O escuro estava se formando num infinito mudo e o formigamento estava cessando.

Alguém colocou a cabeça sobre o meu coração e disse:

- Está fraco, mas ainda tem pulso.

Minhas pálpebras não me deixavam mais ver, elas não abriam mais. Foi quando ouvi passos, e depois os passos se distanciando. Talvez eles quisessem brincar de outra coisa.

A primeira vez que eu desmaiei foi por uma brincadeira boba dos meus amigos do colégio. Respiração, respiração rápida, bloqueio, pressão no peito. Perda dos sentidos, caí molemente ao chão e do tempo em que fiquei desacordado não sei dizer. Acordei ouvindo zumbidos, as coisas e pessoas estavam deformadas, era difícil ficar de pé. A perda dos sentidos não era coisa boa.

O agora escuro era uniforme. A pressão no peito, o bloqueio, a perda dos sentidos. Caí molemente ao chão. A chuva não cessava, as sirenes se calavam nos círculos vermelhos do escuro dos meus olhos. A perda dos sentidos, a chuva não molhava, ou molhava e era eu que não a sentia. A perda da audição, as sirenes silenciosas...

Deve ser grave, estou deitado na chuva, sem meus sentidos, sem poder levantar, com formigamento... Não sou mais criança. Não posso ter medo do escuro. Eu sempre gostei de formigas.

Eu sempre gostei de formigas.

Eu sempre gostei de formigas.

(...)

- Ele não tem mais os sinais vitais.

As formigas tomaram conta do meu corpo.

Segundo Manuel de Barros “Formiga é um ser tão pequeno que não agüenta nem neblina. Para infantilizar formigas é só pingar um pouquinho de água no coração delas. Achei fácil.” eu também achei.

Mas...

As formigas tomaram conta do meu corpo.

Eu não tenho mais os sinais vitais.

(em memória do Evandro do afro reggae)


Guache(aguadíssimo) em papel paraná.

Texto e imagem por Pamela Facco